Cheiro inevitavelmente espaços, tempos, pessoas e coisas. Cheiro filmes, no cinema e na tv, mesmo os piratas e os sobre piratas, cheiro até desenho animado. Quem não lembra do cheiro do Jamal caindo dentro da privada a céu aberto em "Quem Quer Ser Milionário?" Teatro, então, se os produtores, diretores de peças, atores e atrizes, cenógrafos, dramaturgos e dramaturgues, figurinistas, maquiadores, camareiras, iluminadoras, se esses não se preocuparem com o cheiro que vai compor a dramaturgia, sinto os ácaros das rotundas e das infiltrações ou a água sanitária do pano molhado que foi usado pra tentar tirar os ácaros. Os ácaros e a água sanitária me incomodam.
A Carmem Manito disse - e apesar da voz um pouco mirrada que ela tem, disse bem e mostrou bem o tema proposto - dizendo que foi a Lúcia Santaella que disse primeiro (e eu vi mesmo que foi ela), que os cheiros, inclusive o dos ácaros e da água sanitária, por serem agentes químicos, atingem um tipo de neurônio que só registra para a posteridade uma vaga lembrança da situação em que o cheiro estava inserido e essa vaga lembrança é, na verdade, uma memória afetiva, não imagética, ligada a algum prazer ou desprazer vivido. Por mais que eu reconheça o cheiro dos ácaros e imediatamente detecte que eles estão se divertindo, pulando, gritando, voando em minha volta, isso tudo é apenas um remetimento a alguma sensação afetiva vivida, provavelmente desagradável, um desprazer. O desagradável também é por conta da reação física que ele me provoca: coça o mais profundo do meu ser nasal, e quanto mais eu imagino que eles (ácaros) estão entrando nas minhas vias respiratórias, mais eloquente e dolorosa é a reação.
Para não ir adiante no assunto dos ácaros dos teatros e tornar desagradével a memória do cheiro do almoço que estou tendo o prazer de sentir agora, vou adiante no acontecido. Marcou-me a informação de que o sentido olfativo é o que mais se compara a sensações e lembranças infantis exatamente por estar relacionado aos afetos. De cheiros, lembro principalmente fases da vida. Longe, na minha pequena longa infância, o quintal de casa molhado, os cachorrorrinhos recém-nascidos, o vento do Rio de Janeiro, o pão doce da merenda da escola, a cozinha e o poço da casa da minha bisavó, a minha outra bisa depois do banho. Mais perto um pouco, amores passados, nas ruas, nos sofás, beijos longos, a chuva na Prça Batista Campos, as salas de ensaio com muita disposição e descobertas, muito cigarro, meus bebês, pom-pom e leitinho. Bem pertinho, momentos mais íntimos, cama com filme no fim de semana, café no fim da tarde, a chuva em Santa Catarina, a empada de São Paulo, a feira de Caruarú, as ruas de Salvador, momentos de Brasília, estradas de terra e beiras de rio, o Casarão do Boneco, minha filhas. Tudo são cheiros, mas são sabores, visões, sensações térmicas.
Mas o João Guilherme, que teve que juntar o apelo afetivo do cheiro ao teatro, fez questão de me levar direto ao final dos anos 80 e início dos 90. Nossa! Uma enxurrada de memórias afetivas, prazerosas e não, derramou imagens enevoadas que aos poucos foram tomando cores e contornos nítidos ao meu sentido áptico. Ele trouxe "O Genet, o Palhaço de Deus" e "Em Nome do Amor", da época em que me entregava totalmente ao ser ator, me destruia e recontruia a cada nova montagem.
Nesse papo de juntar cheiro e teatro, lemramos de peças que nem tinham o cheiro, mas a imagem deste era o suficiente para que ele existisse. Como o cheiro de banheiro público em "Dama da Noite" ou do pastelão quentinho em "Farças Medievais".
Mas falei do sentido áptico lá em cima e nem disse nada sobre ele. Saber dele, como novidade pra mim, também foi marcante. O sentido que vai além, é um sistema. Se pensarmos nos sentidos como sistemas e compreendermos a complexidade de cada um, poderemos buscar em nós mesmo que sensações temos quando juntamos os sentidos. Mais ainda quando percebemos a importância deles para a memória. O áptico, que junta todas as sensações táteis do nosso maior órgão, mesmo as internas, e é completado com o que de cada um dos outros sentidos leva ao tato e, disso, à memória, é talvez o nosso principal registrador e catalogador de sensações.
Na sequência do esquema dos encontros/aulas, a proposta, chamada de Eu-mundo, colocou espontaneamente dois casais formados nas aulas anteriores para uma ativação da memória afetiva e fantástica. Um dos dois do casal conversaria com alguém real, que lá estava representado por uma cadeira vazia, um assunto que sempre quis e não teve oportunidade de realizar (ainda ou nunca mais terá). O outro contaria uma história fantástica, relacionada a assuntos ocultos, acontecida no âmbito da família.
Os dois casais, um de cada vez, passaram por momentos que remeteram á função terapeutica do teatro. Uma espécie de desabafo, no papo e na história contada, foi o que apareceu corajosamente, posto com muita emoção por nossos colegas de trajetória. A fala para o amor terminado, o nuca mais dito ao parente mais amado pela ausência inevitável imposta pelo fim da vida, levou todos que assistiam para os seus próprios amores terminados e aos seu mortos cuja palavra nunca mais será ouvida. Alguém que se foi, mas que ainda está ali. A respiração de quem conta dá a dica da profundidade e distância do registro da memória. Teminou com abraços entre os casais, aquele abraço da aula anterior. Exercício de caráter teatral de resgate das memórias como matéria prima para composição artística.
É preciso dizer que mesmo que o comando não tenha sido observado na sua completude, pelo fato de a matéria posta ser rica, a condução permitiu que se seguisse. Explico: nenhum dos participantes resposáveis por contar algo do universo fantástico e oculto o fez. Quer dizer, isso depende um pouco da interpreação de quem estava vendo, mas, à rigor, ninguém foi nesse rumo.
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