Brecht: Escritos Sobre O Teatro
Apresentação
Texto 68 - Brecht: Escritos Sobre O Teatro, Do livro Estética Teatral – Textos de Platão a Brecht, 2ª Edição, de Monique Borie, Martine de Rougemont e Jacques Scherer, edição da Fundação Calouste Gulbenkian.
O Texto apresenta o Teatro Épico de Brecht e seus princípios teóricos. Com referências em datas e no teatro dramático que o antecede, discute a função pedagógica e social do teatro, envolvendo a criação e utilização da dramaturgia, aspectos da criação e atuação do ator e de elementos de composição das encenações.
O Texto
Bertolt Brecht (1898–1966), indo contra o teatro dramático aristotélico, pautado na ilusão e identificação, defende um Teatro Épico, o princípio do distanciamento e assim uma nova dramaturgia numa nova forma de encenação e técnica de interpretação para os atores, onde o teatro media a relação entre o espectador e o mundo. Teatro posto a serviço de uma pedagogia social, que questiona as contradições de uma realidade, não mais natural, mas modificável, onde o espectador, sujeito ativo, se prepara para dominar, agir e modificar a realidade.
O teatro épico
Teatro épico significa muito mais do que aquilo que nele está contido. Na formulação aristotélica, a forma épica e a forma dramática de declamação de um argumento são proferidas de modo basicamente diferente uma da outra. A diferença estaria basicamente no fato de uma ser proferida por homens e a outra recorrer ao livro, detectada nos modos de construção, com leis enunciadas em ramos diferentes da estética, uma apresentada ao público pela cena e a outra pelo livro. Porém, independentemente disso, havia “drama” na obra épica, e “épico” na obra dramática.
A narrativa impetuosa e um choque nas forças presentes são tônicas da forma dramática, com uma interdependência entre suas partes. A épica, ao contrário, permite-se cortar em partes cuja vida independe do restante.
As representações precisavam por à cena não mais conflitos entre homens, como na forma dramática, ou mesmo, como antes, homens à mercê dos destinos (no antigo), mas o homem diante de estruturas de potências metafísicas, de forças que subordinam o mundo.
Foi preciso valorizar o ambiente e significá-lo como manifestação autônoma. As novas condições e possibilidades técnicas surgidas neste período, como o diálogo com o cinema, completam a hipótese de a cena também narrar, também ter voz para além do texto e do ator. O ambiente teatral passou a contradizer, ou confirmar as falas, pôde levantar questionamentos, fornecer informações a mais, esclarecer. Não mais um mero objeto plástico em função da atuação dos atores e do texto.
Neste teatro, os atores não se transformam em personagens, mantêm uma distância em relação a estes, olham-no criticamente. Distanciamento indispensável ao desenvolvimento e entendimento da peça. Suas ações deveriam ser o que eram e, ao mesmo, tempo dizer e ser outra coisa.
E ao espectador não é mais permitido que se identifique àquele personagem e se deixe levar às emoções daquele e submeter-se. Deve enxergar as possibilidades da emoção, as quedas do personagem diante da situação e suas alternativas de superação, ainda que elas não ocorram no palco. Deve discutir tudo que vê ali.
Em suma, o teatro épico é narrado, faz o espectador um observador, mas acorda a sua atividade intelectual, obrigando-o a tomar decisões, precisa ter uma concepção de mundo, pois é colocado diante das coisas, com argumentações e os sentimentos são postos para virarem conhecimento, estará sempre em frente às coisas para estudá-las. O Homem é investigado, vive mudando e é modificador, é processo. Todo o interesse está no desenvolvimento e não no desenlace. Cada cena acontece por si. Ocorre uma montagem, não linear, em saltos ou curvas. O ser social determina o pensamento. A razão sobressai. Os sujeitos são complexos e os objetivos sociais e ambiciosos. È um tetro de elevada qualidade artística pela sua elaboração.
Modelo de uma cena
Um exercício prático como modelo-base de uma cena de teatro épico do tipo primitivo. A proposta é que alguém mostre um fato “natural”, capaz de acontecer em qualquer esquina, para outros que assistem, para que estes tenham, ao final, uma opinião sobre o fato. No caso, uma testemunha ocular de um acidente de trânsito vai demonstrar como ele ocorreu, exibindo o comportamento do condutor ou da vítima.
Parece, em uma primeira leitura, uma demonstração simples demais para se considerar como exemplo de um grande teatro, como o épico, pois este poderia aspirar à necessidade de maior riqueza de detalhamento e complexidade vinda de uma investigação de detalhes do acontecido, mas todos os elementos necessários estão ali contidos no enredo proposto. Mas não será épico se lhe faltar suas características essenciais.
O demonstrador deve se limitar ao interpretar as pessoas envolvidas no fato, para que não engane ou iluda quem o assiste. Não deve tornar o fato como algo extra cotidiano, superior. Não há a preparação da ilusão. O que ocorrerá será uma repetição do fato acontecido, não se esconderá que se trata de uma demonstração. A experiência é transmitida parcialmente, não recriará as emoções reais, não as fará nascer, deverá submeter a emoção à critica do espectador.
O demonstrador não esquece e não deixa esquecer que não é a personagem. Suas opiniões e sentimentos não se confundem com as do personagem. Este é um dos elementos essenciais do teatro épico: o efeito de distanciamento, cujo objetivo principal é dar a quem assiste a possibilidade de pôr-se de fora da cena para um ponto de vista social.
Um gesto codificado, exercido de maneira não natural, serve para explicar ou evidenciar alguma importância. Uma pausa abrupta do demonstrador para explicar ou comentar algo da ação do personagem. São atitudes de do efeito de distanciamento do teatro épico. Então uma movimentação em câmera-lenta (efeito do cinema) quebrará a cena e o próprio demonstrador poderá indicar que o espectador deverá olhar, por exemplo, para o pé que primeiro pisará no asfalto antes do atropelamento.
Destruição da ilusão e da identificação.
Um dramaturgo, um filósofo, um ator e um operário discutem sobre a função da atuação do ator. Falam sobre a quarta parede, que isola o espectador como se ele não estivesse ali, como se não fosse parte daquele acontecimento. A partir disso argumentam sobre modos de representação, sobre a postura dos atores diante dos espectadores e visse-versa, sobre o olhar crítico de cada um dos sujeitos do evento teatral, sobre os limites e possibilidade do texto e objetivos do dramaturgo, sobre as construções dos personagens, suas interpretações e significados, sobre a eliminação da identificação.
A fábula
A fábula, como acontecimento delimitado, entre numerosos interesses, satisfaz um determinado. Contém procedimentos da vida cotidiana, devidamente ajustados pela lógica e idéias de seu autor sobre a fábula da própria realidade. Os personagens são ajustados em função das idéias. Ela é o coração do espetáculo, tudo é em sua função. Seu objetivo é que o acontecimento retenha mais a atenção que o que afeta um homem em particular. É a fábula a contentora de todas as informações e impulsos com todos os seus processos gestuais, que irão conferir o prazer ao público. Mas para que o espectador não se afunde nela, o encadeamento dos acontecimentos devem atentar para os seus nós, devem poder interpor comentários, opondo-se umas partes às outras, como peças dentro da peça.
O ator toma posse do seu personagem se assim o fizer pela fábula. Por ela ele atinge a personagem definitivamente. Estudar o papel será estudar a fábula. Se a vê criticamente, extrai dela, enquanto acontecimento global delimitado, contradições que o possibilitam uma composição capaz de se surpreender e surpreender o público. É necessário que ele conserve e registre essas contradições na sua representação do personagem. É preciso que resgate seu conhecimento do mundo e dos homens e exponha seus questionamentos.
No teatro burguês, tais contradições tendem a ficar escondidas e o estado das coisas como se não houvesse outra maneira de existirem e acontecerem. Os acontecimentos são constantes e lineares.
Com cenas representadas em simplicidade, com experiências vindas da vida na ordem de sua sucessão, sem preocupação com o sentido geral da peça, ajustam uma fábula autêntica, que se desenvolverá de modo contraditório, com multiplicidade de idéias. A utilização profunda, premeditada e bem executada dos efeitos do distanciamento, permite ao espectador ver a situação como histórica e mutável, cuja reação seja a atividade.
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Há de se perceber que o teatro moderno é o teatro épico, que elaborou sua mudança, apropriando-se de novas possibilidades técnicas e linguagens emergentes, sem, no entanto, o descuido de uma nova ordem social. Expôs as próprias deficiências como linguagem artística, englobando os elementos que o compunham e os revalidando com novas maneiras de utilização, como o texto, a atuação, a cenografia, etc. Reviu sua função social e pôs em pauta a simplicidade da execução, cuja riqueza está na contradição ponto de vista e não na grandiosidade dos elementos do espetáculo, desvinculando divertimento de alienação.