Imaginários

O Exercício

Com base no texto “A etnocenologia poética do mito”, de João de Jesus Paes Loureiro, destaquei o poema do paraibano Chico Cézar, “Sonho De Curumim”, para a realização deste exercício de criação e reflexão. Este poema, que hoje está inserido na obra musical do artista, foi arranjado como um samba enredo.



O POEMA

Sonho De Curumim

Cunhã

Eu tive um sonho ruim

Sonhei que era de manhã

E um índio cherokee

Raptou você de mim

Cunhã

Tróia no xingu

Guerra das nações

Tacape atômico baixa no soho

E o grito de socorro é universal

Tróia no xingu

Guerra das nações

Reteso o arco da nova aliança

Dor signo flecha cruza o céu da aldeia global

A esperança é que no fim do episódio

Após o ódio

Vem o carnaval



A Etnocenologia Contida

Na organização de palavras, cuja fonte de significação indica a possibilidade de uma narrativa onde a irrealidade do sonho parece estar tonalizando os fatos, somos levados a extrair cenários com imagens por vezes antigas, mas por vezes carregadas de destruição saídas de um telejornal veloz. A realidade, transfigurada do sonho, é expressa em símbolos e sugere tensões culturais da era contemporânea, e outros de um tempo passado, mas que não descartam a possibilidade de integrarem um tempo lírico ou uma atemporalidade onírica, com sentimentos universais como ciúme, traição, esperança.

Um índio de alguma das etnias situadas na região do Xingu, no Brasil, conhecedor e vivente de sua cultura, mas também conhecedor e vivente de outras culturas, com outras referências. Algum indivíduo que saiu da tribo para estudar, mas não deixou, de fato, sua cultura. Esse é o protagonista desta saga. Porém, a saga é, nessa verdade, um sonho, talvez premonitório, pois o título indica que o sonho é de um curumim, criança indígena. O curumim, então, sonha que é esse protagonista.

O autor, ao indicar Tróia como referência, sugere que a cunhã raptada no sonho é a mulher amada de um indivíduo importante, quiçá chefe, daquela nação e que isso causa uma guerra em grandes e longas proporções. Com essa mesma referência, sigo a idéia de que o intencional raptor, por ser nobre em uma nação estrangeira, teria sido aceito como amigo na nação do Xingu e oportunamente, num ato considerado de traição, cometido o rapto. A idéia do estrangeiro é colocada com a imagem do índio cherokee, índio de nação indígena norte americana, mas ao citar o Soho, bairro da cidade de Londres, na Inglaterra, parece descaracterizar a nacionalidade deste personagem ou dar um caráter universal à idéia do estrangeiro.

Porém, quando coloca como cenário principal da batalha o bairro Inglês, propõe ao mito grego um motivo para o rapto mais destacado, talvez, das intenções dos deuses e mesmo de algo mais nobre, como a fuga de um amor imposto. O Soho, conhecido pela relação com a indústria do sexo, insere o tema de tráfico de mulheres para prostituição no desenvolvimento da saga. Tema que remete aos atos cometidos por colonizadores, mas que é algo atual e mundializado e tido como problema global. No caso, nessa verdade, de ter sido cometido por um indivíduo importante de uma nação, acrescido da traição a um outro indivíduo importante de uma outra nação, gera um conflito internacional e provoca manifestações e posicionamentos de outros chefes de nações, que remete ao mito novamente.

A guerra das nações provoca alianças para o sulucionamento da questão, que toma as proporções bélicas das grandes guerras mundiais, num tempo contemporâneo ou futuro, cujas armas são de longo alcance. Imagem vestida pelo significado atribuído ao “tacape atômico” e “signo flexa” que “cruza o céu da aldeia global”, indicando mísseis com resultados catastróficos para o planeta.

Porém, não há que perder as esperanças. O sonho acaba em confraternização e alegria, prevendo um entendimento e festa com os envolvidos na discórdia, com os justos, ou com os que foram injustiçados e, por fim, recompensados. Idéia de final feliz, ainda que a dor seja tamanha.

Aqui ocorre um retorno do poema ao mito. Da sua dimensão poética, o poema nos imprime função estética. Mas, nos seus acontecimentos, invade o campo da narrativa, fabulando, pelos significados colocados, com dramaticidade, um seqüenciamento lógico de fatos. Essa conversão do poema à fábula é referência do leitor, cuja organização se estabelece pela necessidade individual de uma lógica narrativa. O processo poético de integração lingüística e desintegração semântica, citado no texto “A etnocenologia poética do mito”, de João de Jesus Paes Loureiro, é desfeito e retorna à matéria existencial da situação humana, do fato individual ao combate global.

Vou ao exercício da criação, à narrativa.

Um curumim de uma etnia da região do Xingu tem um sonho. O sonho se passa em um tempo para ele desconhecido. Sonha que é um grande Chefe da sua própria aldeia. Mas um chefe, além de guerreiro, culto e experiente em viagens pelo mundo. Em sua tribo recebe a visita do Chefe de uma nação estrangeira e sua comitiva, como anfitrião, o recebe e hospeda como amigo.

O estrangeiro, talvez se sinta superior em relação aos anfitriões. Numa chance oportuna, revela o verdadeiro motivo da visita e rapta a esposa do Chefe junto com outras mulheres daquela nação, levando-as, sob encomenda, para serem vendidas no mercado internacional de prostituição. Elas vão parar em Londres, no Soho, em um clube privado, freqüentado por grandes empresários de multinacionais.

O fato gera manifestações de várias partes do mundo, de outros Chefes de nações. Alguns a favor do Chefe Xingu e outros, de alguma maneira envolvidos no escândalo, atrapalham as negociações diplomáticas de resgate. Todo o evento resulta em um grande conflito internacional de proporções altamente destrutivas e catastróficas ao planeta.

Ao final da guerra, ainda que as perdas tenham sido muitas, o mundo confraterniza a vitória dos justos.